O ensino domiciliar pretende deslocar a responsabilidade do Estado para a família. Neste momento no Brasil tramita no Congresso e Legislativos de diferentes estados projeto de homeschooling. Para dialogar com este projeto é imprescindível resgatar nossa história recente. O debate acerca do ensino domiciliar expõe uma ferida não tratada no Brasil. Se considerarmos 1985 como o marco de redemocratização no Brasil, podemos ir (re)constituindo uma linha histórica que desvela a situação de fragilidade do sistema educacional desigual, injusto e perverso em nosso país.
Foi nos anos de 1990 que caminhamos em direção a universalização do ensino fundamental no Brasil. Estamos falando de ensino fundamental e em universalização, não em obrigatoriedade, que tem a qualidade de ser obrigatória a oferta pelo Estado, são conceitos e concepções diferenciadas. Em 2009 foi aprovada a EC – Emenda Constitucional 59 que avançou para a obrigatoriedade dos 4 aos 17 anos, ou seja, atende da educação infantil ao ensino médio. Esta EC 59/2009 ainda apresenta algumas questões polêmicas que dizem respeito aos jovens que estão no ensino médio com idade superior aos 17 anos. A evasão e o abandono no ensino médio alcançam índices elevados, os jovens, não raras vezes, ingressam no ensino médio com idades superiores aos 17 anos.
É muito importante resgatar esta trajetória dos direitos de acesso à educação pública antes de se falar em ensino domiciliar. A LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional elaborada em 1996 trouxe avanços para crianças e jovens do Brasil, mas exigem um contínuo avanço que está longe de ser conquistado. O ensino domiciliar pretende deslocar a responsabilidade do Estado para a família. A questão é porque as famílias estarão mais preparadas que o Estado? A organização da educação brasileira tem investimentos de décadas para produzir os avanços que tivemos, dentre eles destaco dois educadores que foram incansáveis na luta por uma educação pública de qualidade: Anísio Teixeira e Darci Ribeiro.
Se aprovado e sancionado o homeschooling, as famílias terão que seguir algumas regras, que não existem hoje, dentre elas, alinhar os conteúdos da BNCC – Base NacionalComum Curricular no ensino domiciliar. A pergunta central, quem vai fiscalizar o que é feito nas famílias? O Estado?
Defender ensino domiciliar é tripudiar e negar o acesso destes brasileiros ao ensino público organizado e de responsabilidade do Estado. O que está por trás deste projeto é o desmonte da educação pública.
No livro A tirania do Mérito: o que aconteceu com o bem comum? SANDEL (2020) descreve a política de humilhação entre os que não tem acesso à educação nos Estados Unidos: entre os vencedores, gera arrogância, entre os perdedores, humilhação e ressentimento. A arrogância meritocrática reflete a tendência de vencedores a respirar fundo o sucesso, a esquecer a sorte e a sina que os ajudaram ao longo do caminho.
O homeschooling no Brasil persevera em garantir o ensino para uma parcela cada vez menor da população, esquece que em nosso país o ponto de partida não é igual para todos, é um projeto que oportuniza os que têm possibilidades, desenvolverem-se. O debate aqui proposto é por um princípio de justiça, todos devem ter igualdade de oportunidades e partir da mesma linha de largada, caso contrário apagam-se os valores da República.
O Brasil do ensino domiciliar caminha na contramão dos direitos de acesso, permanência e sucesso escolar. A arquitetura deste projeto produz um efeito cascata onde, cidadãs e cidadãos, que não entram ou não permanecem na escola, estão fadados ao insucesso na vida. Importante registrar que estes cidadãos, em um futuro, estarão fora dos parlamentos, do judiciário e dos governos.
O homeschooling reforça que crianças e jovens que não têm condições de pagar por professores e escolas privadas, permaneçam fora da esfera pública ao longo de suas vidas, mantendo aberta uma ferida social histórica, que seguirá perpetuando a injustiça social.
O discurso do ensino domiciliar tem um efeito corrosivo na produção de direitos de acesso amplo a educação pública.
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Por Mariângela Bairros Coordenadora do GEPPEM – Grupo de Estudos de políticas públicas para o Ensino Médio
Integrante do Núcleo de Políticas e Gestão da Educação.
Departamento de Estudos Especializados