Na edição desta sexta-feira, 22, a ADUFRGS-Sindical inicia uma série de matérias, entrevistas e podcasts para aprofundar o debate com a base e a população sobre as ações afirmativas e os 10 anos da Lei de Cotas.
Neste episódio, o sindicato traz uma entrevista com a antropóloga, professora e Secretária de inclusão da Universidade Federal de Goiás (UFG), Luciana de Oliveira Dias, sobre essa legislação que completa 1 década.
Durante o podcast, ela defende políticas e ações complementares para garantia da permanência dos estudantes cotistas ingressantes nas universidades públicas e institutos federais para a conclusão do curso de graduação. Luciana alertou sobre o combate ao racismo estrutural. “Quando pensamos no sistema de cotas, o racismo estrutural impede maiores avanços de inclusão, de justiça social e assegura cruéis processos de discriminação e perversas situações de privilégios raciais que precisam ser combatidos. 99% da população universitária é branca. É preciso romper com esse racismo estrutural que institui um sistema de opressão a segmentos discriminados, que ao mesmo tempo mantém privilégios a pessoas como se fossem direitos”, advertiu.
ADUFRGS-Sindical – A Lei de Cotas 12.711/2012 garantiu o acesso de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nas universidades públicas e institutos federais. Dez anos depois de sancionada, a legislação que surgiu como forma de reparação histórica aos povos discriminados, deve ser revisada pelo Congresso Nacional. Inclusive, está em tramitação um Projeto de Lei 3422/21 que adia para 2062 a reformulação da Lei de Cotas. Primeiramente, para contextualizar o tema, qual a proposta inicial da Lei de Cotas? Ao longo destes 10 anos alcançou o seu objetivo?
A Lei Federal de 12.711/2012 conhecida como Lei de Cotas completa 10 anos agora e veio para normatizar um programa de ações afirmativas no sistema federal de instituições federais de ensino superior e técnico. A Lei de Cotas criou a reserva de 50% das vagas para estudantes oriundos da escola pública e, dentro deste contingente, as cotas baseadas em critério de renda e as cotas étnico-raciais para pretos e pardos e indígenas também se inseriram.
A aprovação da Lei de Cotas se deu há uma década e foi criada numa época em que as IFES já tinham ações neste sentido desde 2003. Essa legislação se inspira nas ações afirmativas. Sua aprovação em 2012 vem na sequência da decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 186, que declarou por unanimidade a constitucionalidade da Lei de Cotas. Essa decisão animou e incentivou o Congresso para a aprovação da Lei de Cotas. Passados 10 anos é o momento de realizar a revisão da Lei de Cotas pelo legislador.
Ao longo desses 10 anos, o que observamos é um alcance parcial desses objetivos apresentados por esta lei. Temos a realização de uma parcialidade daquela inclusão. A reserva de vagas da Lei de Cotas que precisa ser conciliada com outras propostas de políticas públicas que efetivem de maneira ampliada a inclusão, no que compreende o ingresso e a permanência dos cotistas nas universidades. É fundamental que sejam combinadas a essa política pública específica, que é a Lei de Cotas, outras ações e políticas para efetivação da inclusão de fato desses estudantes pertencentes a segmentos historicamente discriminados na sociedade brasileira nos espaços universitários.
A Lei de Cotas prevê a revisão automática em 10 anos. A análise que aponta a inclusão pode distorcer a realidade de permanência e conclusão do curso?
A própria concepção de inclusão precisa ser repensada, inclusive por intelectuais e toda a comunidade acadêmica que compõem as universidades. A inclusão não se efetiva se estiver restrita ao momento do ingresso. Sem a geração de condições para a permanência e para finalização do curso de graduação desta estudante que entra utilizando o sistema de cotas, a inclusão não se realiza, porque a própria sociedade brasileira é de base discriminatória. O que sustenta as relações e interações sociais na sociedade brasileira é uma perspectiva discriminatória e racista.
O Brasil discrimina o sujeito que é marcado por esse pertencimento étnico-racial específico. Se a base da sociedade é discriminatória, um programa, uma política, uma lei que garanta somente o ingresso desse sujeito em espaços de tomada de decisão e de poder como é o da universidade, o ingresso não vai ser o suficiente para manter esse estudante. É fundamental que existam políticas e ações complementares para garantia da permanência desse indivíduo cotista ingressante nesse espaço e, também para a conclusão do seu curso de graduação.
A política de cotas deve se aliar a outras ações e políticas para que a inclusão de fato aconteça. Isso porque o racismo estrutural se encarrega eficazmente de assegurar desigualdades, garantindo inferiorizações de segmentos historicamente discriminados e privilégios de segmentos da sociedade tornados superiores, que passam a viver esses privilégios como se fossem direitos.
O racismo, nesse sentido, não é somente uma estrutura de opressão, ele não simplesmente oprime um segmento da população como negros e indígenas, ele também é um sistema de manutenção de privilégios em prol de outro segmento. Historicamente vão se constituindo instituições e espaços de tomada de decisão e poder como pertencentes exclusivos a segmentos tornados superiores da sociedade. Isso faz com que a gente chegue no início dos anos 2000 com menos de 1% da população universitária constituída de pessoas negras – 99% da população universitária é branca. É preciso romper com esse racismo estrutural que institui esse sistema de opressão a segmentos discriminados, que ao mesmo tempo mantém privilégios como se fossem direitos.
Pode se dizer que cota não é esmola e sim uma reparação histórica?
Exatamente, cota não é esmola! Cota é a única possibilidade concreta de efetivação de reparação racial e realização de justiça social no âmbito das universidades e órgãos públicos. As cotas são fundamentais para geração de situações de equidade, igualdade e representatividade numérica no âmbito de uma instituição. Só depois da instalação desta equidade entre indivíduos diferentes racialmente diferenciados é que podemos começar a pensar em meritocracia.
O racismo estrutural é a formalização de um conjunto de práticas institucionais, históricas, culturais e interpessoais dentro de uma sociedade, que com uma frequência muito alta coloca um grupo social, racial ou étnico em uma posição melhor para ter êxito nos seus projetos. Ao mesmo tempo, prejudica outros segmentos de modo que condena esses grupos a um processo de inferiorização gerando as desigualdades e disparidades que se desenvolvem ao longo do tempo no âmbito da sociedade brasileira.
O racismo estrutural é absolutamente eficaz porque é reproduzido não somente individualmente, mas também institucionalmente assegurando a reprodução de um modelo de sociabilidade e de distribuição de bens materiais e simbólicos na sociedade e isso reflete nas universidades, onde se perpetuam opressões e privilégios. Estamos lutando contra esse sistema de opressão e privilégios.
Quando pensamos no sistema de cotas, o racismo estrutural impede maiores avanços de inclusão, de justiça social e assegura cruéis processos de discriminação e perversas situações de privilégios raciais que precisam ser combatidos. Somente com a geração de espaços equitativos e representativos racialmente poderemos falar em mérito. Não é possível falar em mérito em espaços caracterizados pela desigualdade, inclusive racial. Nesse sentido, cotas é aquele instrumento que vai gerar ambientes plurais e multirepresentados para que a igualdade de condições e de tratamento seja elevada e a partir daí, começarmos a avaliar mérito.
Cota não é esmola! É uma necessidade urgente de reparação racial nos ambientes de poder da sociedade.
Existem dados sobre o aproveitamento dos estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades públicas e institutos federais?
A percepção individual é absolutamente necessária para algo que o movimento negro chama de teste do pescoço. Meta o seu pescoço nos espaços e verifique se esse lugar é plural e representativo do percentual de diversidade que está constituído na sociedade.
Ao longo desses 10 anos de Lei de Cotas o que vamos ver é uma alteração estética nas universidades. Como docente, eu comecei a observar nas salas de aula da minha universidade, a UFG, uma representatividade equitativa de indivíduos racialmente diversos, depois de 2008 quando a instituição adotou as cotas antes da lei de cotas.
Com a implementação da Lei de Cotas percebemos que uma turma de um curso elitizado como Direito, não é constituída apenas de homens ou somente de pessoas brancas, mas a gente começa a ver mais mulheres pretas, pardas, indígenas e quilombolas, mais pessoas oriundas de escolas públicas e de baixa renda nas salas de aula, nos corredores e na universidade.
A Lei de Cotas tem 10 anos de aplicação e nós, pesquisadores e pesquisadoras, ocupamos as universidades e produzimos pesquisa. Temos uma grande quantidade de pesquisas que revelam um aumento estético nas universidades com a introdução destes corpos, mas também uma alteração ética, porque esses corpos trazem consigo um conjunto de saberes, que altera, inclusive, o modo operante de produção do conhecimento dentro das próprias universidades.
A ANDIFES realizou um estudo muito interessante em 2019, no âmbito da pesquisa nacional do perfil sócioeconômico e cultural dos graduandos das instituições federais de ensino superior que conseguiu retratar uma mudança no perfil das universidades brasileiras, que se deu em grande parte com a implementação da Lei 12.711/2012 – estudantes pretos, pardos e indígenas nas IFES passaram de 36% do total de alunos em 2003 para 52% em 2018. Neste mesmo período, estudantes com renda mensal familiar per capita de até 1 salário-mínimo e meio, caracterizado como baixa renda, aumentaram de 44% para 70%.
Isso significa dizer que a universidade pública e os institutos federais hoje são constituídos majoritariamente por pessoas que compõem a comunidade estudantil de baixa renda. Há mais de 55 mil estudantes com deficiência no ensino superior. Isso é um avanço fantástico! Os povos indígenas ingressaram nas universidades e houve a criação de cursos específicos para esse segmento. Na UFG criamos, em 2007, o curso de educação intercultural indígena. Hoje contamos com 300 indígenas aldeados representantes de 28 povos cursando um curso de graduação na UFG. Isso torna a universidade numericamente mais representativa da grande diversidade que compõe a sociedade em geral. Temos alterações éticas e estéticas que são promovidas pela adoção de cotas raciais e, não somente para estudantes oriundos de escolas públicas e de baixa renda, mas também cotas étnico-raciais que também tornam a universidade cada vez mais plural e representativa da grande diversidade que constitui a sociedade brasileira.
A Ouça o podcast aqui e confira a opinião da professora Luciana Oliveira sobre a diferença entre a Lei 12.711/2012 de cotas nas universidades e da Lei 12.990/2014, que trata sobre as vagas para negros e negras nos concursos públicos. Ela fala ainda, a respeito da qualificação dos cotistas para além da formação e a presença de docentes negros/as e indígenas nas universidades públicas e institutos federais.