No podcast desta sexta-feira, 6, a ADUFRGS-Sindical conversa com o reitor e diretor geral acadêmico da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, sobre as ações afirmativas para garantir o acesso de estudantes negros e negras nas universidades públicas e privadas do País. Na ocasião, o reitor defendeu a renovação automática da Lei de Cotas, que completa 10 anos em 2022.
Esta entrevista faz parte da série alusiva aos 10 anos da Lei de Cotas, que traz conteúdos e podcasts para aprofundar o debate com a base e a população em geral sobre as ações afirmativas de combate ao racismo estrutural.
Veja alguns destaques da entrevista.
ADUFRGS-Sindical – Inaugurada em 20 de novembro de 2003, a Universidade Zumbi dos Palmares é a primeira e única instituição de ensino superior voltada para a inclusão de pessoas negras na América Latina. Essa é uma data simbólica, como surgiu a ideia de criar essa universidade?
Todos nós já fomos jovens e conhecendo as dificuldades dos jovens negros/as em acessar a educação superior tivemos essa inquietação. Foi nos bancos da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, de onde somos oriundos, que pensamos na hipótese de seguirmos o exemplo dos jovens negros americanos que construíram suas universidades ainda no século XIX. A partir do modelo dos EUA, tivemos convicção que seria possível construir uma agenda semelhante de inclusão e valorização do negro no Brasil, ou seja, uma instituição e ambiente de ensino que acolhesse e privilegiasse esse público em sua história e pertencimento. Além disso, que auxiliasse esse estudante afro-brasileiro a acessar o mercado de trabalho e fortalecesse suas realizações em todos os setores da sociedade brasileira. Nosso objetivo era combater uma realidade severa, ou seja, a não presença de jovens negros/as nas universidades públicas e privadas do nosso país.
Como se dá o ingresso dos estudantes negros e negras na universidade? Existem cotas ou programas de ingresso como o Prouni?
O nosso projeto de constituição da Universidade já se apresentou como uma ação afirmativa para garantir a presença de até 70% de jovens negros nos quadros de discentes e as demais vagas são disponibilizadas para aqueles que desejarem. A forma de acessar às vagas é por processo seletivo com a realização de vestibular.
A universidade oferece cursos de Direito, Administração entre outros. Na grade curricular existe algum diferencial no conteúdo que trate sobre a história e cultura afro-brasileira? No Brasil, temos vários expoentes negros que contribuem nas áreas da ciência, tecnologia, literatura, mas que a sociedade e a própria comunidade negra desconhece. Existe algum incentivo a esse debate no que tange a questão?
Sim. Desde o primeiro momento de formulação do projeto de constituição de uma instituição de nível superior, tivemos a compreensão de que todos esses aspectos e dimensões da participação, da historicidade e da contribuição do negro no Brasil e no mundo precisaria estar contemplada num currículo que pretendesse justamente fortalecer o jovem negro, sua autoestima e o conhecimento das realizações daqueles profissionais que os antecederam. A temática do negro está transversalizada em toda a grade curricular. Na área do Direito, trabalhamos com o Direito Racial, na Publicidade, Dimensões e Perspectivas da Estética Negra, em Administração, com o Marketing Etnográfico, entre outros. A disciplina de História privilegia a história e cultura do negro no Brasil e no mundo. Nas atividades comunitárias e de extensão seguimos essa especificidade.
De que forma a universidade contribui para permanência dos estudantes negros/as no ensino superior?
Nós tivemos ao longo desses primeiros 18 anos muitos resultados positivos no sentido de acolher esses jovens e mantê-los nos bancos escolares ao longo de todo o curso. Para aqueles que tiveram limitações severas de recursos financeiros, nós disponibilizamos bolsas de estudos em diferentes projetos. Temos ainda um trabalho intenso de inclusão desses jovens em estágios e cursos traines de muitos parceiros corporativos que sempre prestigiaram e acompanham nosso trabalho.
Já existem casos de sucesso oriundos da Universidade Zumbi dos Palmares?
Desde o início do nosso projeto, tivemos a convicção que o jovem negro é um talento em potencial e o que ele precisava era apenas uma oportunidade para poder revelar isso. Esses estudantes puderam fazer estágio e depois aprimorar sua qualificação e muitos ascenderam rapidamente nas suas carreiras profissionais como advogados, publicitários e administradores, por exemplo.
A Lei de Cotas 12.711/2012 completou 10 anos e faz parte da política de ações afirmativas para superação das desigualdades raciais e sociais. Na sua opinião, ao longo desse período, a Lei de Cotas alcançou o seu objetivo?
Não tenho dúvidas que sim. A Lei de Cotas atingiu o maior objetivo que foi tirar o nosso país da inércia e da letargia no que diz respeito à promoção de uma política pública para essa agenda e, sobretudo, no encorajamento do Estado para fazer o enfrentamento que permitisse que a Lei de Cotas fosse aprovada, implementada e que alcançasse os seus primeiros 10 anos. Isso fez com que o Estado entendesse que era necessário ter uma ação propositiva e particularizada para o acesso do negro ao ensino superior, fazendo com que essa política pública se transformasse em lei.
Nós saímos de um número insignificante de negros na educação superior e, hoje depois de 10 anos, nós temos números exponenciais de negros no ensino superior, o que permitiu a criação de oportunidades e a transformação intensa e profunda no pensamento educacional brasileiro na formulação e estruturação das universidades públicas, principalmente. Além do acolhimento da sociedade como uma política pública transformadora e como uma política que cumpre um papel social de grande relevo.
Depois de 10 anos sancionada, a legislação que assegura vagas para pessoas pretas, pardas e indígenas nas instituições federais de ensino superior prevê revisão por parte do Congresso Nacional. O senhor defende a renovação automática da Lei de Cotas? Por quê?
Primeiramente, a Lei de Cotas define que o prazo para implementação da política pública seria de 10 anos e, ao final desse prazo, haveria uma revisão para verificar a continuidade dessa política pública. No entanto, a lei não diz como será a revisão e o que será feito se não houver a revisão. O Ministério da Educação ao longo desse período não fez relatórios a respeito e não tem nada que possa balizar a análise do Congresso Nacional. Defendemos que, se não existem elementos para avaliar os pressupostos de cumprimento da lei, essa renovação deve ficar para outro momento, porque em agosto de 2022 será impossível fazer essa revisão. Queremos evitar prejuízos e retrocessos. Precisamos analisar com calma a lei para termos elementos capazes para pensarmos no que fazer para aprimorar e melhorar a implementação dessa política afirmativa.
Na sua avaliação, a Lei de Cotas cumpre o papel de inclusão social? Como o senhor avalia a permanência dos estudantes cotistas nas universidades públicas para conclusão do curso de graduação?
Não houve uma preocupação e atenção para a permanência desse público no ensino superior por conta da constituição da lei. A legislação cria mecanismos para os estudantes negros ingressarem nas universidades públicas, mas não se debruçou na situação deles, pois a maioria é composta por jovens de parcelas vulneráveis da sociedade e de baixo poder aquisitivo. Estudar em cursos da universidade pública federal implica num custo adicional que, muitas vezes, esses jovens não têm condições de arcar. Manter esse público nos bancos escolares implicará em disponibilizar recursos adicionais necessários para que isso se torne realidade. No entanto, a lei não determinou essa questão para viabilizar a permanência. Nessa renovação, todos os projetos de lei reconhecem que é necessário criar mecanismos de manutenção desses jovens. Esse possível adiamento e ampliação do período de renovação de Lei de Cotas conta com legislações que já contemplam formas de ajudar os estudantes negros a permanecerem no ensino superior.
Pode se afirmar que cota não é um privilégio e sim um direito?
Sim, sobretudo diante das desigualdades sociais do País. Na nossa sociedade, a universidade pública sempre foi restrita para aqueles que tem capacidade financeira e condições de se preparar para ocupar esses espaços. Estar numa universidade pública significa ter que concorrer com quase 100 concorrentes por 1 vaga. Na nossa constituição de um sistema de educação, infelizmente, nós disponibilizamos apenas 20% das vagas do sistema de educação para as universidades públicas e todos os demais precisam recorrer à universidade privada. As cotas cumprem o objetivo de proporcionar o acesso dos estudantes negros e de baixa renda nas universidades públicas porque reforça a democratização desse acesso, fortalece a pluralidade num setor que é público e mantido com o dinheiro de todos os brasileiros, beneficiando os mais vulneráveis como negros, indígenas, mulheres e pobres.
É importante lembrar que a Lei de Cotas completou 10 anos, mas a política de cotas tem 20 anos. A primeira ação de política de cotas na universidade pública federal é de 2003 com a criação de cotas para negros/as na Universidade de Brasília. Nas universidades estaduais, a primeira Lei de Cotas é de 2002 na Universidade do norte fluminense do Rio de Janeiro, UERJ.
Nesses primeiros 20 anos de implementação da lei de cotas foi possível substituir um sistema que era extremamente seletivo e permitia o acesso das pessoas com alta renda, por um sistema democrático que garanta o acesso de jovens menos favorecidos nas universidades públicas.
Quais os desafios para superação do racismo estrutural no sistema de cotas?
O desafio será a permanência, persistência, resiliência e muito trabalho para seguir progredindo e superando o racismo estrutural. Porém, temos acompanhado um retrocesso no Brasil com manifestações de intolerância racial nas redes sociais, nas ruas e nos espaços institucionais. O racismo segue desafiador e precisamos resistir!
Ouça o podcast aqui. https://open.spotify.com/show/7bkdo4PaT5EzL0XEUFjH7b