Essa breve avaliação sobre o novo regime fiscal aprovado na câmara se apoiará no conhecido autor na área de economia: John Maynard Keynes. Em termos de gestão fiscal, Keynes ao longo de suas obras defende que o setor público deva exercer um papel de reduzir as incertezas inerentes à dinâmica econômica e ao mesmo tempo de estimular à economia em momentos de enfraquecimento da demanda. Deste modo, um regime fiscal ideal deveria ter como característica maior previsibilidade e permitir que o Estado tenha um comportamento anticíclico, isto é, de ampliar seus gastos em momentos de instabilidade e de reduzir em momentos de elevado crescimento econômico. O autor sugere que se crie um orçamento corrente (ordinário) que deva ser predominantemente superavitário e um orçamento de capital que deva ser não apenas anticíclico, como também um mecanismo constante para o desenvolvimento econômico e garantia do pleno emprego através do investimento público.
O novo regime fiscal (NRF) é uma regra mais flexível em relação às anteriores vigentes e traz algumas inovações. Basicamente, ela garante que sempre haverá aumento da despesa real em pelo menos 0,6% e não permite aumento maior do que 2,5%, saliente-se que se a variação das receitas for maior do que 3,57%, o excedente poderá ir para investimentos. Essa medida é fracamente anticíclica no piso e teto. Neste intervalo, as despesas vão acompanhar a atividade econômica e, consequentemente as receitas, com um redutor de 30%, assim, ela é fracamente pro-cíclica dentro da banda.
Tem surgido considerações críticas ao limitador de 2,5% de crescimento real nas despesas correntes, embora de fato impeça grandes incrementos, a convenção atual não parece ser favorável ao aumento do tamanho do Estado e elevação dos impostos, tampouco da ampliação da dívida pública. Há que se considerar que o crescimento econômico nos últimos 30 anos foi de 2,39% e a expectativa da SPE da Fazenda é que seja de 2,42% para os próximos anos. Já a expectativa de crescimento populacional é 0,6% a.a. Ou seja, com essas bandas se garante que haja a manutenção do gasto per capita, mas que ao mesmo tempo ela não aumente em participação do PIB.
Ainda sobre esse aspecto, a base de crescimento se dá em relação a um orçamento que já foi aprimorado pela PEC da transição, a qual permitiu que ampliasse o gasto médio para R$ 703 do bolsa família, assim como o aumento real do salário mínimo e a redução da fila do INSS. Também permitiu uma recuperação do investimento público na ordem de R$ 75 bi, mesmo que esse ainda seja inferior ao necessário.
A nova regra prioriza investimentos e estabelece um piso para esses. Ela traz certa separação entre despesa corrente e investimentos.
A separação poderia ser total, prevendo equilíbrio apenas nas despesas correntes e permitindo déficit para as de capital, como preconiza Keynes. De toda forma, a possibilidade do excedente de receita ir para investimentos é uma mudança que deve ser saudada.
Outro aspecto positivo do arcabouço é que não há uma meta direta em relação aos níveis de endividamento. Isso é um aspecto fundamental pois essa dinâmica depende de elementos que não estão sob gerência da política fiscal. Por fim, é importante destacar que a repartição de receitas da União para entes subnacionais não será contabilizada no limite de despesa.
Todavia, alguns elementos desse regime merecem maior reflexão, a começar pela amarra à receita. Como alternativas para elevação de receita tem-se: o combate à sonegação, à elisão, à evasão, maior oneração aos mais ricos, tributação de aplicações financeiras isentas, tributação de dividendos e revisão de renúncias de receitas. Nos últimos anos, houve aumento de renúncias de receitas, as quais podem ser revertidas.
Um segundo aspecto é que embora se estabeleçam níveis mínimos de investimento, não há garantias que eles sejam suficientes para o Estado dinamizar e transformar a economia como se faz necessário. Tão pouco se garante um orçamento suficiente para reverter situações de forte queda na demanda privada, dado seu caráter apenas fracamente contracíclico nos momentos de baixa. Ademais, pode impedir variações reais de salário-mínimo muito intensas e também recomposição de salários de servidores públicos e da estrutura burocrática.
Em artigos anteriores recomendamos um conjunto de medidas que teriam o potencial de melhorar significativamente o NRF. Contudo, o texto final aprovado na câmara não apresentou avanços em termos de potencial de gastos/investimentos. Pelo contrário, trouxe maior rigidez, tanto em termos de retirada de exceções, quanto de maiores penalidades no caso do descumprimento do piso da meta de superávit primário, podendo inclusive deixar de haver aumento nominal dos servidores federais embora medidas semelhantes já tenham sido implementadas na PEC186/2019. Também limitou em 70% para investimentos dos recursos que ultrapassarem o teto da referida meta (ver Câmara).
Concluindo e resgatando a perspectiva de Keynes, o NRF vai ao encontro de algumas de suas recomendações, pois busca reduzir as incertezas dos agentes privados e fortalece as convenções sobre a moeda/dívida do Estado. Além disso, ao priorizar o investimento retoma o aspecto central do que Keynes chamou de orçamento de capital. Por outro lado, alguns elementos do texto original já traziam limites para o papel do investimento público e as alterações do relator na câmara provocaram uma reversão de importantes aspectos positivos apresentados pelo texto original. À toda sorte, não nos resta dúvida que o arcabouço proposto é superior ao teto de gastos e possui importantes avanços em relação às regras anteriores, mas que ajustes seriam fundamentais para uma melhor dinâmica econômica, como procuramos demonstrar acima.
Maurício Andrade Weiss [1]
Róber Iturriet Avila [2]
[1] Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia da UFRGS.
[2] Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Economia da UFRGS.
Foto: Câmara dos Deputados