Se Jesus ressuscitasse hoje no Brasil, seria visto como um defensor dos direitos humanos e provavelmente fosse chamado de comunista
Ana Boff de Godoy (*)
Nesse domingo, 31 de março de 2024, cristãs e cristãos de todo o mundo celebraram a Páscoa. No Brasil, esse dia nos lembra, também, que há exatos 60 anos se instaurava um período de ditadura militar no país.
A Páscoa é a principal celebração do ano litúrgico cristão e o domingo de ressurreição é o ponto mais alto da Paixão de Cristo, exatamente porque remete ao dia em que Jesus ressuscitou, no terceiro dia após a sua crucificação.
Jesus, nascido na cidade palestina de Belém e morto em Jerusalém, capital de Israel, encarnou (e encarna) a mais perfeita comunhão entre o líder religioso e o líder político. Um palestino de família judia, um galileu – pois criado na Galileia, mais especificamente em Nazaré, daí também ser chamado de nazareno. Um sujeito pertencente à mais baixa classe social, um pobre que não aceitava a dominação cruel que o império romano em conluio com certos líderes judeus impunha ao povo. Um agitador, um revolucionário. São muitos os adjetivos atribuídos a esse homem a quem também são atribuídos milagres e crimes.
O Oriente Médio era (e continua sendo) palco de crises políticas sem fim, as quais se misturavam (misturam) a disputas religiosas e a acordos econômicos que acabavam (acabam), sempre, por recair sobre a população mais humilde, tornando-a escrava (real ou figurativamente) de um sistema corrupto, coordenado por quem muito tem, mas que nunca se satisfaz. Pois eis que alguns desses líderes judeus, em sua prática de identificar lideranças populares e tirá-las de cena, denunciaram Jesus aos líderes do império romano, acusando-o de impostor. Uma acusação política, posto que Jesus era considerado uma ameaça ao poder instituído devido à sua insistência em afirmar que todos são irmãos e irmãs perante Deus e que, para Ele, não há diferença entre ricos e pobres, judeus e palestinos, homens e mulheres, puras e prostitutas, nobres e plebeus. E se não há diferença entre os humanos no reino de Deus, tampouco deveria haver no reino dos homens. Assim, o pão e a terra deveriam ser de todos, e não de alguns poucos. Com medo de que a população se revoltasse e não pagasse mais seus impostos, os que lucravam com o suor do povo denunciaram, prenderam e crucificaram Jesus.
O Brasil de 1964 era governado por João Goulart, gaúcho de São Borja, advogado e político filiado ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Jango, como era conhecido, antes de chegar à presidência foi deputado federal pelo Rio Grande do Sul por três mandatos, ministro do Trabalho, Indústria e Comércio de Getúlio Vargas, além de vice-presidente de Juscelino Kubitschek. Ocupando esses lugares, colocava-se como defensor do povo, dos direitos trabalhistas e previdenciários. Criticava o capitalismo parasitário e especulativo, e defendia a produção de riquezas sob uma égide social e humana. Ao assumir como presidente, em 1961, assumiu também um país em crise militar, com dívidas internas e externas. Em seu discurso de posse, apelou por união e democracia, mas recebeu de seus opositores um golpe militar e a imposição de uma ditadura que duraria 21 anos.
O argumento das Forças Armadas para o golpe na democracia brasileira foi que era preciso evitar uma ditadura comunista no país. Sob esse pretexto, ao longo dos anos de chumbo foram violados direitos humanos básicos, como a liberdade de expressão, a liberdade de ir e vir, a dignidade da pessoa humana. Pessoas que se opunham ao regime, que defendessem o retorno à democracia e clamassem por justiça social eram consideradas subversivas e inimigas da pátria e, assim como Jesus, eram denunciadas, perseguidas, presas e torturadas. Muitas foram mortas. A Comissão Nacional da Verdade confirmou 434 mortes e desaparecimentos políticos. O relatório Brasil Nunca Mais, atesta que pelo menos 1918 presos políticos foram torturados. Nesses documentos, são descritas 283 formas de tortura, sendo as mais comuns o pau-de-arara, o afogamento, a cadeira do dragão, o soro da verdade, a geladeira e o estupro.
E aqui estamos, em 2024, sessenta anos depois de um duro golpe desferido em nossa pátria e em seus filhos e filhas, encerrando mais um período de Páscoa. A derivação do nome vem de Pesach, que significa passagem, passar adiante, e que indica, para os judeus, a libertação do povo de Israel do domínio egípcio e o início da sua saga em direção à terra prometida. Para os cristãos, a passagem é da vida terrena para a vida eterna, para a vida etérea e livre de pecados. A nossa ditadura passou. Mas o seu gérmen segue vivo.
E segue vivo porque pessoas que desejam uma sociedade mais justa e que defendem os direitos de todos e todas, de forma igualitária, seguem sendo vistas, por alguns tantos, como ameaças. Segue vivo porque o poder e a ganância imperam sobre o mundo (seja ele cristão, judeu, muçulmano, ou de qualquer outra coloração religiosa), sustentando um sistema social e econômico corrupto. E o sistema é assim porque criado à nossa imagem e semelhança.
Jesus, criado ele mesmo à imagem e semelhança de Deus, foi um preso político assassinado pelo sistema corrupto que ele criticava. Se ressuscitasse hoje, aqui mesmo no Brasil, seria visto como um defensor dos direitos humanos e muito provavelmente fosse chamado de comunista por muitos que se dizem cristãos e que não se constrangem em andar armados ou em condenar aqueles que partilham o pão com os pobres e miseráveis. Se ressuscitasse em Belém, é muito provável que fosse novamente levado à Jerusalém e, então, recomeçaria seu calvário.
(*) Ana Boff de Godoy é professora do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA, vice-presidente da ADUFRGS-Sindical, secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT-RS, diretora de Relações Internacionais do PROIFES-Federação.
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