Por Ana Boff de Godoy
Em 2020, o inacreditável aconteceu. Passamos por uma pandemia que levou a vida de 20 milhões de pessoas e três anos para chegar ao fim. “Vamos sair dessa como pessoas melhores, mais fortes, mais humanos…”, era o que se dizia. Batíamos palmas ao final do dia para trabalhadores e trabalhadoras da saúde que, incansáveis e destemidos, entregavam-se de corpo e alma ao cuidado de pessoas totalmente desconhecidas. Nós os chamávamos de heróis.
Hoje, cinco meses após a Organização Mundial da Saúde (OMS) ter anunciado o fim do período pandêmico, nossa memória e desejo de nos tornarmos uma humanidade melhor está tão enterrada e esquecida quantos nossos mortos. Nossos heróis seguem na batalha diária, mas longe dos holofotes. Enfermeiras e enfermeiros lutam, ainda, por um salário digno. O piso nacional da enfermagem, aprovado em 4 de agosto de 2022, até agora não saiu da promessa.
Temos, como humanidade, hábitos terríveis, que nem uma pandemia foi capaz de mudar. Fazemos falsas promessas, gostamos de delegar a culpa aos outros, nos iludimos facilmente, somos insaciáveis, julgamos rápido, pensamos pouco, e ainda não conseguimos desenvolver a empatia e o amor ao próximo, mesmo com todas as religiões que fomos capazes de criar. E tudo isso nos põe em guerra. Guerras dentro de nós, nas nossas famílias, entre vizinhos, entre grupos, times, partidos, governos, desgovernos. Guerras entre Estados e dentro de Estados e por Estados.
Antes mesmo de acabar a pandemia, a Rússia invadiu a Ucrânia e lá se vão quase 200 mil mortos (120 mil na Rússia e 70 mil na Ucrânia), além de quase 300 mil feridos. Os números seguem crescendo porque o embate segue. Assim como segue a guerra civil na Síria, que começou em 2011. O enfrentamento entre o regime sírio, as forças curdas, o grupo do Estado Islâmico e os grupos de oposição (Frente Nusra e Ahrar-al-Sham) já provocaram cerca de 350 mil mortes. Um pouco menos do que as mortes provocadas pela guerra civil do Iêmen, que começou em 2015. Mas quem quer saber do Iêmen? Ou da Etiópia, com seus 222 mil mortos? Ou da Nigéria e seus 366 mil mortos e o Boko Haram sequestrando e estuprando crianças e mulheres como se fossem nada? Ou de Mianmar e seus 252 mil mortos?
Às vezes, desastres naturais surgem para dar uma mais uma sacudida em nosso planeta pouco pacífico. Só esse ano, os terremotos fizeram 3 mil vítimas no Marrocos e 2 mil no Afeganistão. Já as águas deixaram mais de 11 mil mortos na Líbia. Mas quem quer saber da Líbia? Já se passou mais de um mês e não se ouviu mais falar… não sabemos se os 20 mil desaparecidos naquela tragédia apareceram ou se devemos somá-los aos mortos. Nossa memória, às vezes, é enterrada antes mesmo dos mortos. Nossa humanidade, idem.
No último dia 07, desafiando toda a inteligência e a tecnologia israelense, o Hamas invadiu Israel e matou, a sangue frio, 260 jovens que se divertiam em uma rave a 20 quilômetros da Faixa de Gaza. E o terror se fez presente, novamente, na Terra Santa, deixando, até esse momento, 5 mil mortos, sendo 3.600 palestinos e 1.400 israelenses. Os feridos já chegam a 18 mil, sendo a maioria de civis, entre eles os jovens que dançavam em território fronteiriço, e crianças e idosos israelenses; e crianças e idosos palestinos, que estavam em suas casas, suas escolas, suas mesquitas, seus hospitais.
É compreensível o desejo de vingança e o direito de defesa por parte de Israel? Totalmente. Mas, talvez, a memória de Auschwitz, Treblinka, Balzec, Chelmo, Sobibór, do Gueto de Varsóvia… talvez essa memória não esteja tão enterrada e esquecida a ponto de desejar, deliberadamente, provocar ao outro o mesmo horror pelo qual o seu povo passou. Como nos lembra Ernest Hemingway, correspondente de guerra em Madrid durante a guerra civil espanhola e grande escritor norte-americano do século XX, “toda guerra, por mais necessária ou justificável que seja, é sempre um crime”. “Um massacre” – como disse outro grande escritor do mesmo século e redator do Ministério de Guerra, Paul Valéry – “entre gente que não se conhece para proveito de pessoas que se conhecem, mas não se massacram”.
Os senhores das guerras não entram na guerra… Enquanto os guerrilheiros do Hamas massacravam os civis israelenses, matando-os e sequestrando-os para os usar como escudos humanos e moeda de troca, e enquanto o povo palestino é massacrado pelo exército israelense, sem água, sem comida, sem ter para onde fugir, Yahya Sinwar, um dos maiores líderes do Hamas, faz guerra à distância, em hotel de luxo no Qatar, e Benjamin Netanyahu manda o povo palestino correr dentro de uma ratoeira.
O principal jornal israelense, o Haaretz, contabilizou que 86% dos israelenses culpam o primeiro-ministro Netanyahu pelo ataque do Hamas, sendo que mais da metade pede a sua renúncia e não concorda com os crimes de guerra cometidos sob seu comando.
O povo israelense não é a extrema-direita sionista. O povo palestino não é o Hamas. Israel é um Estado. A Palestina deveria, também, ser um Estado livre. Livre, inclusive, do Hamas. A soberania e a autodeterminação dos povos é um princípio que deveria transcender os credos, ser mais forte do que as religiões, os radicalismos e os interesses econômicos internacionais. A soberania e a autodeterminação dos povos é um princípio do Direito Internacional, mas é também um direito humano coletivo.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 1948 diz, em seu artigo primeiro, que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Diz, ainda, que “todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; que “ninguém será mantido em escravidão ou servidão”; que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”; que “todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”.
Muito antes dessa Declaração ser pensada, assinada e adotada, Voltaire, escritor iluminista do século XVIII, declarava que “a guerra é o maior dos crimes, mas não existe agressor que não disfarce seu crime com pretexto de justiça”.
Até quando vamos seguir com esses pretextos, ignorando os direitos mais básicos e os princípios mais fundamentais? Até quando vamos seguir nos matando uns aos outros, levantando muros e explodindo pontes? Até quando vamos seguir enterrando nossa memória e nossa própria humanidade? O que estamos aguardando? Uma próxima pandemia, para nos nutrir com a ilusão de que poderemos ser melhores?
Ana Boff de Godoy é professora do departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA, vice-presidente da ADUFRGS-Sindical e secretária de Políticas Sociais e Direitos Humanos da CUT-RS.
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