Não sofre a angústia da morte aquele que sempre foi movido pela visão de uma outra coisa

Nuccio Ordine nos deixou, aos 64 anos, no último sábado, 10 de junho, vítima de um AVC. Um dia triste para as humanidades de todo o mundo.

Nuccio, como o chamávamos, nasceu Diamante Ordine, na cidade de mesmo nome, na Calábria, Itália, em 18 de julho de 1958. Morreu em Cosenza, também na Calábria, onde dedicou toda a sua vida ao ensino da Literatura e da Filosofia.

Seu funeral foi no domingo, 11, no Clube Universitário da Universidade da Calábria, onde era professor titular. Ali, seus colegas e alunos prestaram a última homenagem ao mestre e amigo.

Depois de Umberto Eco, Nuccio Ordine foi o ensaísta italiano mais conhecido, e um verdadeiro ativista da educação e da cultura, um lutador incansável e bravo, mas que sempre utilizou o mundo sensível como ferramenta de atuação no mundo concreto.

Com a publicação de A utilidade do inútil (L’utilità dell’inutile, 2013), best seller traduzido em 26 países, tornou-se uma referência mundial na defesa da cultura e da educação como pilares das sociedades, tendo proferido dezenas de conferências sobre o tema nos mais diferentes países, inclusive no Brasil e aqui, no Rio Grande do Sul, onde mantinha estreitas relações.

Em 2011, recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) pelas mãos do então reitor Carlos Alexandre Netto. Voltou para proferir a Aula Magna na Ufrgs, em 2016, tendo lotado o Salão Nobre da Reitoria.

Outorgas

Em 2017, tive a honra de defender a sua candidatura ao título de Professor Honoris Causa na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA).

No dia 04 de setembro de 2017, a Reitora Lucia Pellanda entregou a ele o título, a primeira honraria oferecida pela UFCSPA.

Nesse dia, tive também a honra de apresentá-lo ao Consun e a toda a comunidade, e de participar ao seu lado na sua conferência que abriu o II Encontro de Educação e Humanidades nas Ciências das Saúde.

Esse título honorífico lhe foi também outorgado pela Universidade de Caxias do Sul (UCS, 2017), pela Universidad de Valparaiso (Chile, 2019), pela Università di Urbino (Itália, 2019), pela Université Catholique de Louvain (Bélgica, 2020) e pela Universidad Pontificia de Comillas (Espanha, 2020).

Foi considerado membro de honra da Academia Real da Bélgica (2020) e do Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências (2010).

Recebeu o título de Comendador da Ordem ao Mérito da República Italiana (2010); de Grande Oficial da ordem ao Mérito da República Italiana (2018); de Cavaleiro da Legião de Honra da França (2012), de Cavaleiro da Ordem das Palmas Acadêmicas da França (2009), de Comendador da Ordem das Palmas Acadêmicas da França (2014) e, por fim, no mês passado, recebeu o grande Prêmio Princesa das Astúrias de comunicação e humanística da Espanha (2023).

Além de professor de Literatura na Universidade da Calábria, era Fellow no Centro de Estudos Italianos da Universidade de Harvard. Ensinou em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos, dentre elas a Universidade de Yale, a Universidade de Nova York, a Escola Normal Superior de Paris, a Universidade Sorbonne-Paris IV, a Universidade Sorbonne Nouvelle-Paris III, o Centro de Estudos Superiores da Renascença de Tours, o Instituto Universitário da França-Paris VIII, o Instituto de Estudos Avançados de Paris, o Instituto Warburg, de Londres; e a Universidade Católica Eichstätt-Ingolstadt, da Alemanha.

Crítica da cultura

Nuccio Ordine é reconhecido internacionalmente como um expoente da crítica da cultura, tendo abordado-a em sua relação com o ensino e com a sociedade, além de um dos mais importantes estudiosos do Renascimento.

Autor de vários livros sobre temas da literatura italiana e do pensamento filosófico europeu, com especial atenção para as relações políticas da sociedade renascentista, suas obras encontraram calorosa acolhida no mundo inteiro, sendo traduzidas para as mais diversas línguas, do inglês ao japonês, do francês ao chinês, do alemão ao romeno, do russo ao português.

No Brasil, seus livros foram traduzidos por Luiz Carlos Bombassaro, professor de Filosofia da Faculdade de Educação da Ufrgs, com quem mantinha profunda amizade.

Sua vasta produção bibliográfica e, de modo especial, a repercussão de seus estudos junto ao público, a intelectuais e críticos como George Steiner, Eugenio Garin, Pierre Hadot e Umberto Eco fizeram com que recebesse condecorações e prêmios significativos por parte de prestigiosas instituições internacionais, como sinal de reconhecimento da importância de sua presença no cenário mundial.

Como especialista em Renascimento e Giordano Bruno, dedicou ao filósofo (cujo pensamento dá título a este meu pequeno artigo-homenagem) três livros, traduzidos em nove línguas: La cabala dell’asino. Asinità e conoscenza in Giordano Bruno (de 1995, traduzido para o português em 2008 com o título A cabala do asno. Asinidade e conhecimento em Giordano Bruno); La soglia dell’ombra. Letteratura, filosofia e pittura in Giordano Bruno (de 2003, traduzido para o português em 2006 com o título O umbral da sombra. Literatura, filosofia e pintura em Giordano Bruno); e Contro il Vangelo armato. Giordano Bruno, Ronsard e la religione (2007).

Escreveu, ainda, Teoria dela novela e teoria del riso nel Cinquecento (2009); Le rendez-vous de savorirs. Littèrature, philosophie et diplomatie à la Renaissance (2009); Les portraits de Gabriel Garcia Marquez: la repetition et la différence (2012); Tre corone per un re: l’impresa di Enrico III e i suoi misteri (2015); Classici per la vita: una piccola biblioteca ideale (2016); Glli uomini non sono isole: i classici ci aiutano a vivere (2018); George Steiner: l’ospite scomodo (2022).

Projeção angústia

Mas foi a sua obra L’utilità dell’inutile (traduzida por Bombassaro e publicado no Brasil pela editora Zahar, em 2016) que o projetou mundialmente, a partir de uma discussão sobre os saberes humanísticos e artísticos postos em relação com a educação e as ciências.

Um verdadeiro manifesto contra o utilitarismo. Uma posição ousada, em uma época em que predomina uma visão de mundo centrada em uma perspectiva da utilidade tecnológica como única via de acesso ao crescimento e à evolução humana.

Mas seria engano pensar que Nuccio se opunha à ciência e à tecnologia. Ao contrário, ele as defendia como produtos de uma cultura humana e, portanto, como derivadas do sensível, e que deveria servir à própria humanidade, beneficiando os sujeitos e suas sociedades, mas não escravizando-os/as.

Nuccio defendia os saberes, todos eles, e, mais do que isso, defendia o conhecimento como a moeda mais valiosa, porque o conhecimento, dizia ele, não se divide, ao contrário, se multiplica.

Ele sempre contava para seus alunos a seguinte historinha: Se você trouxer uma maçã para dividir comigo, cada um de nós comerá a metade. Se você trouxer uma maçã para dividir com toda a turma, conseguiríamos comer somente um pequeníssimo pedaço. Mas se você trouxer uma ideia para compartilhar conosco, ela irá se somar com a minha ideia e com a ideia de seus colegas. Logo, a ideia se multiplicará, produzindo outras tantas ideias que poderão ser aplicadas de várias formas, em diferentes lugares, por todos nós.

O conhecimento produzindo conhecimento, mas não como simples algoritmos e visando o lucro, e sim a partir complexidade das relações humanas, das trocas de experiências e afetos, visando o crescimento humano e social.

A empatia, a humanidade em seu profundo sentido, o existir para o outro… esses são os materiais que deveriam, de fato, servir como amálgama da nossa sociedade. Elementos muito caros a nós, professores e professoras, que fazemos da educação o nosso propósito de vida.

Propósito que nos sustenta, apesar de nossos baixos salários, da violência que nos ronda e do desprestígio de nossa profissão.

Propósito de busca incessante de nossa própria humanidade, porque, como nos lembra Nuccio, “se escutarmos somente esse mortífero canto que nos empurra a buscar o lucro, seremos somente capazes de produzir uma coletividade doente e sem memória, que acabará por perder o próprio sentido da vida”.

Que possamos, sempre, seguir, a exemplo de Nuccio Ordine, movidos pela visão de outra coisa, essa coisa muito maior, que nos une e faz com que nos reconheçamos humanos, aqui ou acolá, agora e sempre.

Ana Boff de Godoy é professora do Departamento de Educação e Humanidades da UFCSPA e vice-presidente da Adufrgs-Sindical.

Leia a publicação original no jornal Extraclasse aqui.