Em algum lugar do passado, onde identitarismo e romantismo se encontram

Por André Marenco, Núcleo de Pesquisa e Documentação da Política (NUPERGS-UFRGS)   O mundo moderno é constituído por placas tectônicas movidas a partir de dois grandes terremotos: a revolução industrial e a revolução francesa. A indústria arrancou indivíduos de vínculos adscritos à terra, converteu-os em força de trabalho, estruturou relações sociais em torno à economia de […]

Por André Marenco, Núcleo de Pesquisa e Documentação da Política (NUPERGS-UFRGS)

 

O mundo moderno é constituído por placas tectônicas movidas a partir de dois grandes terremotos: a revolução industrial e a revolução francesa. A indústria arrancou indivíduos de vínculos adscritos à terra, converteu-os em força de trabalho, estruturou relações sociais em torno à economia de mercado e desencadeou uma espiral tecnológica que, hoje, termina por descartar o próprio trabalho humano. O Iluminismo e a Grande Revolução pariram a citoyanneté, status compartilhado por todos os indivíduos de uma comunidade nacional. Iguais perante à lei, logo cidadãos puderam reivindicar a extensão deste status, conquistando direito ao voto, a bens públicos e, mais recentemente, ao reconhecimento de direitos relacionados a gênero e orientação sexual, discriminação racial, sustentabilidade ambiental. Somente porque somos iguais como cidadãos, podemos reivindicar tratamento que reconheça que todos tem direito a vida digna e justa. A invenção da cidadania permitiu que o século XIX trouxesse à luz a geringonça representada pela combinação da experiência democrática grega com  a representação parlamentar britânica, parindo os governos representativos[i], com partidos permitindo fazer com que cidadãos sintam-se representados ao criar identidades como esquerda, direita, socialista, democrata-cristão, republicano, petista, tucano, ao mesmo tempo que equacionaram o paradoxo do voto, de Condorcet.

O abalo sísmico do final do XVIII gerou reações, de um e outro lado do panteão do pensamento político, desde então. Entre os conservadores Edmund Burke talvez seja o mais conhecido e cultuado, mas o inventário produzido por Albert Hirschmann[ii] sobre as retóricas da intransigência mostra como a indignação provocada pelo abalo ao ancien regime fora muito mais generalizada. Para a maioria era preciso um retorno ao passado, reconstituir o elo perdido da ordem que por séculos havia produzido ordem e estabilidade. O romantismo -das artes e literatura à filosofia- talvez represente adequadamente este espírito de idealização de um passado perdido.

À esquerda, a crítica à sociedade e instituições burguesas tinha seu vetor orientado para outro lado, para o futuro. O tempo não para, e o trem da história movido pela indústria e pela luta de classes não poderia ser detido até que alcançasse a estação do socialismo. A teleologia marxista voltou-se contra tanto aqueles que queriam o retorno do passado, como aos que pretendiam dar um basta nas mudanças. Mas, seu olhar estava voltado para o futuro.  A crítica ao ludismo pode ser uma evidência disto.

Dois séculos mais tarde, a história deu razão ao pessimismo da razão, todas as revoluções socialistas ao concentrar poder para eliminar a desigualdade terminaram por parir tiranias que aboliram votos, direitos, liberdades, vidas, criando novas desigualdades. Todas, sem exceção.

Quando o muro caiu, a esquerda ficou desorientada frente ao decantado fim da história. Apegou-se primeiro, às democracias participativas como um sinal de que as democracias liberais poderiam ter uma alternativa crível. Giovanni Sartori[iii], o conhecido cientista político italiano, sugeriu um teste crítico para procedimentos decisórios alternativos, sua extensão temporal e espacial. Seu argumento é que maior ampliação de participação encurta a duração temporal ou escala espacial de procedimentos democráticos. Sem ter promovido alternativas decisórias à representação em escala nacional, as democracias participativas foram, uma a uma, esgotando-se com o tempo. Novamente, a esquerda ficara sem um desiderato capaz de opor-se à economia de mercado e à democracia liberal.

Neste momento, saída dos campi universitários norte-americanos surge o novo estandarte contra (todas) as ordens estabelecidas. Conhecido inicialmente por comunitarismo[iv], rebatizado a seguir com o rótulo mais acessível de identitarismo, a nova fórmula ganha rapidamente audiência, provavelmente por sua capacidade em articular a retórica acadêmica com a demanda por legítimo reconhecimento de direitos de mulheres, negros, indígenas, LGTBQIA+, oferencendo simultaneamente o conforto do sentimento de pertencimento, que classe e ideologia haviam deixado de fazê-lo[v]. Para ser mais preciso parece necessário inscrever o identitarismo dentro de um  movimento mais amplo, observado por Simon Susen como um  postmodern turn in social sciences[vi]. Conforme Susen, este se desdobraria em cinco ‘viradas’: (1) relativismo epistemológico, com a preferência pelo construtivismo em relação ao objetivismo, do particularismo ao universalismo; (2) interpretativismo na pesquisa social; (3) culturalismo sociológico, com primazia para dimensões simbólicas e representacionais; (4) contingência e indeterminação histórica e, (5) prioridade para políticas de identidade e reconhecimento, considerando a existência de uma multiplicidade de projetos mais do que a sociedade como um projeto.

Antes de entrar em terreno minado, é importante esculpir em mármore que a redistribuição de recursos materiais e o reconhecimento de direitos feministas, de gênero, raciais ou de quaisquer cidadãos por justiça, oportunidades iguais e tratamento não discriminatório pelas instituições e seus concidadãos, são justas. O ponto aqui reside na matéria prima com a qual são construídas as fundações que legitimam uma justiça equitativa. A Lei Maria da Penha representou enorme avanço ao quebrar o princípio de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. A violência doméstica é muito mais do que a relação de um homem e uma mulher, são cidadãos, e isto dá direito ao Estado de penetrar neste recôndito espaço privado em nome de garantir direitos à uma cidadã.

Tentando evitar o risco de forjar uma caricatura, o identitarismo parte de uma crítica ao citoyen republicano, alvejado como uma abstração que apagaria identidades raciais, de gênero, ou tantas outras que indivíduos possam portar. Deve ser ressaltado como uma virtude de teorias identitárias, a capacidade em traduzir um debate altamente abstrato como este, em palavras de ordem de fácil aplicação. A crítica ao apagamento produzido pelas instituições ocidentais -universidades e conhecimento científico aí incluídos- em relação a histórias de mulheres, negros, LGTBQIA+, converteu-se em bandeira pret-a-porter, capaz de emular novamente comunidades contra toda a dominação supostamente construída em nome do Iluminismo.

Assim, para os identitários, trata-se de reafirmar o pertencimento às múltiplas e infindáveis comunidades que possam existir na sociedade, resultantes das múltiplas dimensões de dominação: de homens sobre mulheres, brancos sobre negros, homens negros sobre mulheres negras, heteronormativos sobre os demais.      Como lembra Natalie Heinich[vii], ao criticar a abstração do cidadão republicano,  identitários parecem confundir cidadãos com indivíduos, distinção cara ao republicanismo francês. Cidadão corresponde a um status compartilhado que afirma que todos possuem os mesmos direitos à justiça e equidade. Indivíduos são -parece óbvio- diferentes e estas diferenças devem ser reconhecidas e receber um tratamento justo e adequado às suas singularidades. É precisa e unicamente por que são cidadãos que possuem direitos a ter suas diferenças aceitas e reconhecidas. Quando não há este sentimento compartilhado de citoyanneté, diferenças étnicas, raciais, culturais, geográficas, ou de gênero, inevitavelmente se expressam através da violência e de intolerância com os demais, dos diferentes. Para quem pense que genocídios e limpezas étnicas estejam longe demais, basta lembrar episódios de cancelamentos e punições à supostas transgressões morais -caras, aliás ao puritanismo anglo-saxão-  agora  universalizadas pelo decolonialismo identitário[viii].  A questão subjacente é se o reconhecimento à diversidade deve levar-nos à inclusão como cidadãos dotados de iguais direitos ou à comunidades separadas e intolerantes, sem linguagem e diálogo comuns.

O que pode parecer filigrana teórica e abstrata ganha concretude quando analisamos, por exemplo, o debate sobre políticas de ação afirmativa nas universidades federais brasileiras. A adoção de cotas, inicialmente em universidades estaduais e federais, o julgamento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal e a promulgação da Lei 12711/2012 fixando a obrigatoriedade de reserva de vagas em universidades federais representaram uma das mais importantes mudanças na sociedade brasileira, com repercussões prováveis nas próximas gerações. Em 2010, a proporção de negros e pardos em universidades públicas era de apenas 13%. Dez anos mais tarde, 50,3% dos estudantes de instituições públicas de ensino superior são negros e pardos[ix]. É dificil imaginar uma mudança nesta escala sem políticas de ação afirmativa como esta, e na correção dos argumentos em seu favor, dez anos atrás.

Mas se somos todos a favor de cotas, qual a diferença, qual o problema, então? A questão reside nos argumentos mobilizados para justificar o uso de políticas de ação afirmativa. Feres Jr.[x] promove um competente inventário de diferentes concepções subjacentes à políticas de ação afirmativa (PAFs), e às correspondentes matrizes de teorias de justiça. Conforme o  quadro apresentado pelo autor, podem ser identificados pelo menos 3 diferentes argumentos em favor de PAFs: reparação, diversidade e igualdade de oportunidades.

Reparação provavelmente seja o argumento mais frequente na defesa de PAFs e, com certeza, o mais frágil. Parte dos ressentimentos gerados e canalizados pela extrema-direita remetem à precária legitimidade que esta perspectiva é capaz de gerar em sua defesa. Se as raízes da desigualdade, discriminação e racismo que tolhem oportunidades para negros remetem à escravidão -CORRETO- e se os brancos foram seus beneficiários, então seria justo que seus descendentes arcassem com a devida reparação. Há dois problemas salientes com este argumento: em primeiro lugar, ele está alicerçado em uma noção de comunidade, imerso em significados de pertencimento e solidariedade (seria por acaso, a solidariedade mecânica, a la Durkheim?). Não existem indivíduos, dotados de interesses, desejos, preferências, mas é a comunidade que define o que cada um é. Será que passa desapercebido ao identitarismo que esta noção também é compartilhada pelo fundamentalismo religioso e justifica que se assassinem indivíduos, por que estes pertencem a comunidades infiéis? Ou que se obrigue mulheres a casar sem seu consentimento, como um dever perante sua comunidade familiar? Parece residir no DNA da esquerda uma aversão ao individualismo moderno. Este seria não mais do que consciência em si, alienação, falsa consciência, espírito pequeno-burguês, liberalismo vazio. Até este ponto o debate pode servir para animar auditórios acadêmicos, mas qual sua implicação, consequências práticas?

A consequência prática deste argumento é que parece  difícil empreitada convencer um jovem branco que deve dar preferência a um colega negro no acesso a vagas universitárias porque, talvez, seu tatara-tatara-avô tenha sido um proprietário de escravos. “E eu com isto?” talvez pense este jovem branco, enquanto engrossa as fileiras da extrema-direita contra avanços civilizatórios como as PAFs.

Outro paradoxo é que passada mais de uma década das PAFs e a mudança por elas provocada no ambiente universitário, a atmosfera parece menos de júbilo compartilhado pela inclusão e mais de culpa e expiação pelo passado, somados à ressentimentos alimentados no dia a dia. Mais uma vez, os genes do puritanismo inoculados no identitarismo decolonial revelando seus sintomas.

Um segundo argumento é o da diversidade, e este também traz em seu código genético as marcas do identitarismo. Não seria desejável que todas as instituições públicas refletissem em sua composição a diversidade existente na sociedade, ao invés do monopólio de homens brancos que vemos hoje? Sim, é desejável. Especialmente se pensamos em instituições dedicadas a representar a sociedade. Embora a noção de representação=espelho tenha longevas raizes medievais e seja um anacronismo nos dias atuais, é altamente desejável que bancadas partidárias sejam ocupadas por negros, mulheres, LGTBQIA+ ou outros grupos existentes na sociedade. Ou seja, que estas instituições tornem-se mais representativas, sem perder o que somente partidos podem oferecer, a capacidade de produzir concertações que reduzam riscos de paralisia ou ciclicidade decisória.

Mas deve-se reconhecer que nem todas as instituições públicas foram criadas para “representar”. Universidades e centros de pesquisa existem para produzir conhecimento e a sociedade espera que seja isto que elas façam, não são assembléias deliberativas ou micro-cosmos da sociedade. É altamente desejável que tenhamos mais mulheres e negros à frente de laboratórios de pesquisa ou salas de aula universitárias. Para isto, um passo fundamental foi a implantação de PAFs. Se no passado, a proporção de negros que ingressavam em universidades públicas -em especial nas profissões mais elitizadas- era residual, seria de se esperar também que o número de concluintes fosse ainda menor, de candidatos a mestrados e doutorados, menor, e de doutores quase imperceptível. Tendo alcançado mais da metade das vagas universitárias ocupadas por negros, ampliando recursos como bolsas de iniciação científica para cotistas para de fato abrir as portas de laboratórios de pesquisa a eles, adotando rigorosa punição a quaisquer ações racistas, poderemos esperar que em breve tenhamos gerações de brilhantes cientistas negros, produzindo conhecimento relevante para a sociedade.

Se algum proveito podemos tirar da pandemia de Covid-19 foi a compreensão de que ciência é diferente de opinião. Em deliberações democráticas, todas as opiniões tem o mesmo valor, devem ser consideradas de forma isonômica e a regra de decisão é a maioria. Isto não vale para a ciência, onde nem todas as opiniões tem valor, o procedimento para a decisão está baseado em evidências e nos protocolos de investigação baseados em tratamento e controle. E é isto, repetindo, que a sociedade espera da universidade. Parece óbvio, mas tanto o negacionismo de extrema-direita como o relativismo narrativo “crítico” tem dificuldades em aceitar estas premissas.[xi]

Neste ponto, o argumento melhor talhado para construir uma argumentação legítima em favor de PAFs é a igualdade de oportunidades. Diplomas universitários representam o principal diferencial de renda no país[xii], o que define se um jovem negro será médico, juiz, porteiro, garçom ou técnico, como quer o ministro da educação. É importante salientar que este argumento não opõem-se ao mérito, conquista civilizatória que retirou postos e vagas públicas do acesso facultado por relações pessoais. Mas afirma que  em uma estrutura social marcada pelo legado da desigualdade e discriminação racial, pontos de partida são desiguais e equalizá-los através de cotas para o ingresso universitário é o meio para corrigir e criar efetiva competição meritocrática.

Um ponto que não tem sido devidamente observado corresponde às estreitas relações entre identitarismo e romantismo. Se o marxismo projetava suas lentes para o futuro e prometia um homem novo, o identitarismo olha para trás, e constrói suas fortalezas argumentativas em torno a indivíduos romanticamente idealizados, situados em algum lugar do passado, que teria sido apagado pelo Iluminismo, a economia de mercado e a democracia liberal[xiii]. Não parece difícil compreender a desconfiança da esquerda com o Iluminismo. Ele havia prometido a igualdade do cidadão republicano e entregue -no século XIX- voto censitário, jornadas de trabalho desumanas e cerceamento de direitos à mulheres. Não dispondo mais da teleologia marxista, teorias “críticas” recalibraram sua ótica para encontrar identidades e indivíduos com suas experiências originárias antes do pecado original, representado não pela maçã, mas pelo mercado e o voto.

Agora, a ribalta do identitarismo foca no centro da cena aquilo que pode representar identidades constituídas antes ou fora do legado ocidental, associadas a um passado idealizado e uma weltanschauung romântica. “Decolonizar” o conhecimento é a palavra de ordem identitária no campo acadêmico. Dela resulta outro estandarte, o da crítica à “apropriação cultural”. É curioso registrar uma mudança nas representações imagéticas das identidades oprimidas: na antiga esquerda marxista, predominava um componente ativo, a luta coletiva como força motriz de mudança. No identitarismo, oprimidos são desenhados em forma sempre passiva, sofrem o apagamento, são vítimas da modernização, suas identidades são invisíveis às instituições modernas como ciência, mercado e voto. Paternalismo decolonial?

Parece não causar desconforto que a decolonização propugnada, ou a precedência atribuída ao “Sul Global”, tenham tido origem em universidades norte-americanas e difundidas como tendência intelectual da hora. “Rodes é aqui, é preciso saltar!” diz Esopo em sua fábula e repete Marx, no Dezoito Brumário. Se  é preciso decolonizar ao mesmo tempo que se rejeita a apropriação cultural de identidades dominadas -ou seja rejeitar a idéia de que cultura produz significados que são constantemente incorporados e retrabalhados, então a derivação lógica é que devemos recusar a gramática política construída desde o final da Idade Média, seja porque esta é “colonial”, como porque representaria, afinal uma apropriação cultural. Assim como não se pode usar “champagne” para espumantes produzidos fora da França, democracia passaria a ser um conceito com copyright, exclusividade dos gregos; rule of law, accountability, habeas corpus, direitos humanos e representação parlamentar, dos ingleses; cidadania, patrimônio francês; separação de poderes, dos norte-americanos; welfare state, somente na gélida Escandinávia. É de se temer que reste pouco para uma linguagem capaz de construir uma teoria de justiça apta a garantir igualdade de direitos e oportunidades.

Como entender o gospel (God spell), senão como uma combinação que levou ao spiritual, deste ao soul, blues, jazz, chegando até aos Rolling Stones? Origens cristãs e brancas, incorporadas pelos negros oprimidos no sul norte-americano, sendo reformatado constantemente até hoje pelo pop branco anglo-saxão. Em que momento deste percurso um juiz identitário lavra a sentença da apropriação cultural? Nos anos 30, e animados pelo realismo socialista, comunistas defenderam a promoção de uma cultura proletária distinta de uma cultura burguesa. Neste momento, um dos lideres revolucionários do século XX -a despeito de ter ele próprio contribuído para o terror bolchevique- publicou um livro chamado Literatura e Revolução[xiv], argumentando que apenas existe cultura de qualidade ou cultura ruim, independente da classe ou ideologia que a anima. A história se repete…

A fragmentação infinita em busca de identidades singulares multiplica os custos de coordenação para a construção de coalizões aptas a promover redistribuição de recursos materiais e culturais. Como destaca Theodor Lowi[xv], arenas redistributivas caracterizam-se como jogos de soma-zero, com perdedores potenciais mobilizando-se para evitar mudanças no status quo, o que exige coalizões abrangentes para implementar mudanças. Exemplos destas coalizões podem ser encontradas no Partido Democrata, do New Deal e da Great Society, ou nas coalizões vermelho-verde, que implementaram o welfare escandinavo[xvi].

É curioso como tanto a extrema-direita como a esquerda decolonial e identitária brasileira transpõem -sem muitas mediações- estratégias políticas empregadas nos EUA. Desde Newt Gingrich, nos anos 80, a estratégia de sobrevida do Partido Republicano frente às mudanças demográficas tem sido radicalizar para mobilizar um segmento branco e conservador, bem como antigos blue-collars, orfanados pelos democratas. Hillary Clinton replicou no extremo oposto um apelo identitário, sem o mesmo êxito[xvii]. Redundante lembrar como Bolsonaro mimetiza esta estratégia. No outro lado, a esquerda progressista norte-americana tem em identidades raciais e de gênero nichos para a eleição de uma nova e promissora geração de representantes. Sempre “decolonizando” a esquerda identitária brasileira traslada esta estratégia, desconsiderando um importante detalhe: nos EUA, como é sabido, o voto é facultativo,  e as taxas de abstenção, muito elevadas seja nas eleições presidenciais e mais ainda nas legislativas de midterm. Assim, o desafio é mobilizar eleitores para votar, sendo racional adotar estratégias focadas em apelar à raiva e frustração de segmentos com identidades bem demarcadas, mais do que em um median voter, indiferente e moderado. Contudo, como todos sabemos, no Brasil a obrigatoriedade do voto amplia significativamente a relação votos/eleitores, mesmo que parte daqueles sejam traduzidos em sufrágios brancos e nulos. Útil para conquistar cadeiras legislativas, o tribalismo identitário não é capaz de fornecer as ferramentas para quem precisa conquistar um eleitor mediano, condição para vencer em eleições por maioria absoluta para Presidente, governadores ou prefeitos, e parece ter menos ainda a dizer sobre a formulação de planos de governo orientados por políticas redistributivas e inclusivas.

O interpretativismo weberiano indica que ao cientista social cabe desvendar os significados emprestados pelos indivíduos à sua ação. Sem entrar nas implicações epistemológicas desta empreitada investigativa, parece aceitável considerar que a crise da subprime em 2008 -e seu repique no Brasil, em 2013- fizeram emergir recalques e ressentimentos como poderosos combustíveis no comportamento de segmentos potencialmente ativados por preferências intensas. A frustração face à mobilidade social interrompida, o retorno à uma condição social e econômica precária, a invisibilidade de experiências vividas frente à impessoabilidade do mercado e instituições políticas, e a repulsa em assimilar uma condição de fracasso estimularam a busca por responsáveis e sua punição. Os usual suspects são os de sempre: os políticos e o sistema, mas agora, novos personagens ingressam na galeria, como elites culturais, cientistas  e professores. Estes falam uma linguagem codificada e desfrutam de um status inalcançável para quem sempre frequentou os fundos das salas de aulas. As redes sociais nada criaram, apenas permitiram emergir este sedimento simbólico. A extrema-direita estava mais bem equipada e seu rudimentar dualismo schmittiano amigo/inimigo permitiu recepcionar, como uma luva o recalque como humor dos tempos. Mas é preciso reconhecer que o identitarismo também tirou suas casquinhas deste material. Opressões seculares  foram vocalizadas pelo novo romantismo das identidades  através de ressentimentos contra as instituições modernas, mesmo que cidadania, democracia e direitos tenham sido uma construção exclusivamente ocidental e mais recentemente incorporadas à gramática política do “sul global”, precisamente por seu caráter universal.

A combinação de tribalismo identitário com culto à identidades pré-modernas não nos fornece os melhores materiais argumentativos para defender uma justiça equitativa, dificulta a formação de coalizões redistributivas e acirra desconfianças e intolerância. Em nome de um princípio de cidadania republicana, devem ser reconhecidos direitos de todos à sua cultura e sobrevivência. Desenvolvimento não justifica que se suprimam direitos de índios à sua terra e cultura; preconceitos religiosos não justificam que se retirem de mulheres o direito a seu corpo, ou a quem quer que seja a exercer sua sexualidade da forma como seu prazer lhes dita e de forma consensual. Mas, uma coisa é recorrer à prestidigitação romântica para exaltar o passado pré-moderno e identidades adscritivas como modelo a ser seguido; outra é inscrever, mais uma vez, no mármore que índios, mulheres, negros, deficientes, gays, lésbicas, trans, … são cidadãos republicanos e como tal devem ser respeitados, reconhecidos e incluídos, sem qualquer discriminação por suas identidades ou características. Tem o direito de apropriar-se do patrimônio cultural e social civilizatório, representado pela ciência, pela democracia e pela fraternidade. E devem ter asseguradas todas as oportunidades para contribuir com suas culturas e experiências para enriquecer o legado aberto que inicia com o Renascimento, segue no Iluminismo, se reencontra nas poliarquias do século XX e nas descobertas científicas de cada dia.

 

[i] Bernard Manin, The Principles of Representative Government. Cambridge University Press, 1997.

[ii] Albert Hirshmann, A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo, Cia. Das Letras, 1992.

[iii] Giovanni Sartori, A teoria da democracia revisitada. São Paulo, Ática, 1994.

[iv] Bernard Manin, The Principles of Representative Government. Cambridge University Press, 1997.

[iv] Albert Hirshmann, A retórica da intransigência: perversidade, futilidade, ameaça. São Paulo, Cia. Das Letras, 1992.

[iv] Giovanni Sartori, A teoria da democracia revisitada. São Paulo, Ática, 1994.

[iv] TAYLOR, Charles Taylor,  ‘Alternative futures’: legitimacy, identity and alienation in late 20th

century Canada’, in Constitucionalism, Citizenship and Society in Canada. Toronto: University of Toronto Press, 1986; Michael Sandel. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge University Press,

Cambridge, 1982.

[iv] Mark Lilla, La gauche identitaire.L’Amerique en miettes. Paris, Strock, 2017.

[iv] Simon Susen, The ‘postmodern turn’ in social sciences. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2015.

[iv] Natalie Heinich, Oser l’universalisme contre le communautarisme. Paris, Le bord de l’eau, 2021.

[iv] A letter on justice and open debate. Harper’s Magazine, July 7, 2020. https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/ acessado em 17 outubro 2021; Yasha Monk. Espaço para o que pode ser tolerado encolheu com rapidez estarrecedora Folha de S. Paulo, 19 de outubro 2021,  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/yascha-mounk/2021/10/espaco-para-o-que-pode-ser-tolerado-encolheu-com-rapidez-estarrecedora.shtml, acessado em 19 outubro 2021.

 

[iv] IBGE, Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil, Estudos e Pesquisas. Informação demográfica e sócioeconômica, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf , acesso em 17 outubro 2021.

[iv] João Feres Jr. Comparando justificações das políticas de ação afirmativa: Estados Unidos e Brasil. GEMAA, http://www.achegas.net/numero/30/joao_feres_30.pdf, acesso em 17 de outubro de 2021.

[iv] O filósofo Giorgio Agamben publica artigo, em fevereiro de 2020, referindo-se à “invenção da epidemia”, produto da biotanatopolítica praticada pelos Estados modernos desde o século XVIII: “Frente a las medidas de emergencia frenéticas, irracionales y completamente injustificadas para una supuesta epidemia debido al coronavirus, es necesario partir de las declaraciones de la CNR, según las cuales no sólo “no hay ninguna epidemia de SARS-CoV2 en Italia”, sino que de todos modos “la infección, según los datos epidemiológicos disponibles hoy en día sobre decenas de miles de casos, provoca síntomas leves/moderados (una especie de gripe) en el 80-90% de los casos” (…) Si esta es la situación real, ¿por qué los medios de comunicación y las autoridades se esfuerzan por difundir un

clima de pánico, provocando un verdadero estado de excepción, con graves limitaciones de los movimientos y uma suspensión del funcionamiento normal de las condiciones de vida y de trabajo en regiones enteras? (…) Así, en un círculo vicioso perverso, la limitación de la libertad impuesta por los gobiernos es aceptada en nombre de um deseo de seguridad que ha sido inducido por los mismos

gobiernos que ahora intervienen para satisfacerla.” Giorgio Agamben, La invención de uma epidemia. IN: VVAA. A sopa de Wuhan, Piensamiento contemporáneo en tiempos de epidemia. Ed. Aspo, 2020. Publicado originalmente em 26 de fevereiro de 2020, em quodlibet.it

[iv]  Naércio Menezes-Filho,  A Educação e Desigualdade In: Lisboa e Menezes-Filho (Eds.) Microeconomia e Sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2001, p. 13-45.

[iv] (o romantismo) est la protestation culturelle contre la civilisation capitaliste occidentale moderne au nom de certaines valeurs du passé.    Le romantisme proteste contre la mécanisation, la rationalisation abstraite, la réification, la dissolution des liens communautaires et la quantification des rapports sociaux.  Cette critique se fait au nom de valeurs sociales, morales ou culturelles prémodernes,  ou précapitalistes.   Si le romantisme s’affirme comme une forme de sensibilité profondément empreinte de nostalgie, ce n’est pas pour autant qu’il refuse de penser ce qui fait le propre de la modernité : d’une certaine façon on peut même  le considérer comme une forme d’autocritique culturelle de la modernité,  qui   continue, jusqu’à nos jours, à être une des principales structures-de-sensibilité de la culture moderne. Michael Lowy, Rousseau et le romantisme. Mediapart, https://blogs.mediapart.fr/michael-lowy/blog/050512/rousseau-et-le-romantisme, acesso em 17 outubro 2021. Ver ainda: Michael Löwy et  Robert Sayre,  Révolte et Mélancolie.  Le romantisme à  contre-courant de la modernité,  Payot, Paris, l992.

[iv] Leon Trotsky, Literatura e revolução, São Paulo, Zahar, 2007.

[iv] Theodore Lowi, Arenas of power: Reflections on Politics and Policy. London, Boulder, 2009.

[iv] Gösta Esping-Andersen, The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton University Press, 1990.

[iv] Mark Lilla. The End of Identity Liberalism. The New York Times, november 18, 2016, page sr1.[iv] TAYLOR, Charles Taylor,  ‘Alternative futures’: legitimacy, identity and alienation in late 20th

century Canada’, in Constitucionalism, Citizenship and Society in Canada. Toronto: University of Toronto Press, 1986; Michael Sandel. Liberalism and the Limits of Justice. Cambridge University Press,

Cambridge, 1982.

[v] Mark Lilla, La gauche identitaire.L’Amerique en miettes. Paris, Strock, 2017.

[vi] Simon Susen, The ‘postmodern turn’ in social sciences. Basingstoke, Palgrave Macmillan, 2015.

[vii] Natalie Heinich, Oser l’universalisme contre le communautarisme. Paris, Le bord de l’eau, 2021.

[viii] A letter on justice and open debate. Harper’s Magazine, July 7, 2020. https://harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/ acessado em 17 outubro 2021; Yasha Monk. Espaço para o que pode ser tolerado encolheu com rapidez estarrecedora Folha de S. Paulo, 19 de outubro 2021,  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/yascha-mounk/2021/10/espaco-para-o-que-pode-ser-tolerado-encolheu-com-rapidez-estarrecedora.shtml, acessado em 19 outubro 2021.

 

[ix] IBGE, Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil, Estudos e Pesquisas. Informação demográfica e sócioeconômica, https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf , acesso em 17 outubro 2021.

[x] João Feres Jr. Comparando justificações das políticas de ação afirmativa: Estados Unidos e Brasil. GEMAA, http://www.achegas.net/numero/30/joao_feres_30.pdf, acesso em 17 de outubro de 2021.

[xi] O filósofo Giorgio Agamben publica artigo, em fevereiro de 2020, referindo-se à “invenção da epidemia”, produto da biotanatopolítica praticada pelos Estados modernos desde o século XVIII: “Frente a las medidas de emergencia frenéticas, irracionales y completamente injustificadas para una supuesta epidemia debido al coronavirus, es necesario partir de las declaraciones de la CNR, según las cuales no sólo “no hay ninguna epidemia de SARS-CoV2 en Italia”, sino que de todos modos “la infección, según los datos epidemiológicos disponibles hoy en día sobre decenas de miles de casos, provoca síntomas leves/moderados (una especie de gripe) en el 80-90% de los casos” (…) Si esta es la situación real, ¿por qué los medios de comunicación y las autoridades se esfuerzan por difundir un

clima de pánico, provocando un verdadero estado de excepción, con graves limitaciones de los movimientos y uma suspensión del funcionamiento normal de las condiciones de vida y de trabajo en regiones enteras? (…) Así, en un círculo vicioso perverso, la limitación de la libertad impuesta por los gobiernos es aceptada en nombre de um deseo de seguridad que ha sido inducido por los mismos

gobiernos que ahora intervienen para satisfacerla.” Giorgio Agamben, La invención de uma epidemia. IN: VVAA. A sopa de Wuhan, Piensamiento contemporáneo en tiempos de epidemia. Ed. Aspo, 2020. Publicado originalmente em 26 de fevereiro de 2020, em quodlibet.it

[xii]  Naércio Menezes-Filho,  A Educação e Desigualdade In: Lisboa e Menezes-Filho (Eds.) Microeconomia e Sociedade no Brasil. Rio de Janeiro: Contracapa Livraria, 2001, p. 13-45.

[xiii] (o romantismo) est la protestation culturelle contre la civilisation capitaliste occidentale moderne au nom de certaines valeurs du passé.    Le romantisme proteste contre la mécanisation, la rationalisation abstraite, la réification, la dissolution des liens communautaires et la quantification des rapports sociaux.  Cette critique se fait au nom de valeurs sociales, morales ou culturelles prémodernes,  ou précapitalistes.   Si le romantisme s’affirme comme une forme de sensibilité profondément empreinte de nostalgie, ce n’est pas pour autant qu’il refuse de penser ce qui fait le propre de la modernité : d’une certaine façon on peut même  le considérer comme une forme d’autocritique culturelle de la modernité,  qui   continue, jusqu’à nos jours, à être une des principales structures-de-sensibilité de la culture moderne. Michael Lowy, Rousseau et le romantisme. Mediapart, https://blogs.mediapart.fr/michael-lowy/blog/050512/rousseau-et-le-romantisme, acesso em 17 outubro 2021. Ver ainda: Michael Löwy et  Robert Sayre,  Révolte et Mélancolie.  Le romantisme à  contre-courant de la modernité,  Payot, Paris, l992.

[xiv] Leon Trotsky, Literatura e revolução, São Paulo, Zahar, 2007.

[xv] Theodore Lowi, Arenas of power: Reflections on Politics and Policy. London, Boulder, 2009.

[xvi] Gösta Esping-Andersen, The Three Worlds of Welfare Capitalism. Princeton University Press, 1990.

[xvii] Mark Lilla. The End of Identity Liberalism. The New York Times, november 18, 2016, page sr1.

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